20 de novembro de 2010

A nova vida de Luanda

Artigo da revista portuguesa Visão enviado por um blogfriend.
Vale a pena ler. Abs!



A cidade mais cara do mundo não cheira a dólares. Por entre a névoa do cacimbo, a neblina própria da estação seca, sente-se o aroma do cimento e do fumo dos escapes, a essência do lixo nos mercados e nos musseques, ou o perfume do país moderno, para os lados de Luanda Sul, onde nasce uma cidade nova de grandes avenidas, um estaleiro com gruas e andaimes na paisagem.

A banda sonora no ar é um concerto para buzina e berbequim. Estes sons, no entanto, nunca bastariam para saciar o ritmo africano. Em Angola, depois do semba e da kizomba, é hora de ouvir kuduro. Canta Dog Murras, 33 anos, artista famoso: «Boa Angola para o chinês/Boa Angola para o português/Boa Angola para o libanês/ Hum hum, hum hum para o angolano... Que é «hum hum» para a maior parte dos angolanos, percebe-se logo.

O povo vive esmagado pelos preços do outro mundo. Como é que se deixa a barraca do musseque quando se ganha 450 dólares (em profissões como servente da construção civil ou motorista), se um apartamento T2 usado, num prédio sem elevador nem rede de saneamento, custa de renda, no mínimo, 3 500 por mês?

É nestas casas do centro, ou nas vivendas do bairro de Alvalade, ou nos condomínios novos de Talatona, que vive grande parte dos portugueses. As condições desafogadas, em contraste com as dos pobres, levam a imaginação a fantasiar rios de dinheiro. Mas nem tudo o que parece é. Para se manter um estilo de vida de classe média, tal como o concebemos em Portugal, é preciso perder o amor às notas.

No país dos muito pobres e dos muito ricos, já se encontram os «remediados», os «assim-assim», e os que «vivem bem» - as várias tonalidades da classe média. Mas um litro de leite continua a custar 2,6 euros e beber um café deixa-nos três euros mais pobres. Ao menos a gasolina é barata, senão esfumava-se o ordenado nas infinitas horas de ponta, essas sim bem democráticas a liquidar a paciência a todo o tipo de pessoas: aos que andam de jipe Toyota Fortuner com motorista e aos que balançam nos bancos rasgados das Toyota Hiace dos candongueiros.

Segundo as Nações Unidas, Angola ocupa o 146.0 lugar, em 182 países, no índice de desenvolvimento humano: a esperança média de vida é de 48,1 anos; metade da população não tem acesso a água corrente e 54,3% vivem abaixo do limiar da pobreza. Ainda assim, é preciso assinalar a evolução - em 2003, um ano após o fim da guerra civil, 70% dos angolanos sobreviviam com menos de um dólar por dia.

«Vai chegar o tempo», diz Dog Murras, aliás Murthala Fançony Bravo de Oliveira, agora em conversa com a VISÃO, «é o tempo a que eu chamo do 'tu para tu'. Como é? Agora que não há desculpas, isto não andou porquê?» A época em que o cidadão pede contas a si próprio... quando chegará também a Portugal?

A PAIXÃO DE ROSA

A língua de Camões fala-se em Luanda, com dezenas de sotaques. O da própria cidade, o de Malanje, o de Benguela, o do Huambo, o brasileiro, o da Madeira, o do Porto, o das Beiras, o alentejano, o algarvio, o minhoto... Os pedidos de visto para Angola, por parte dos portugueses, aumentam todos os anos. A Direcção-Geral dos Assuntos Consulares calcula que, na antiga colónia, vivam 74 mil.

Boa Angola para o português? Sim, boa. Apesar dos pesares. Seja para aqueles que vão ganhar algum dinheiro e saem de lá antes que o diabo acabe de esfregar o olho; seja para os que gozam, saboreando cada momento, a imensa paixão por África. Rosa ainda se lembra dessa paixão, mas está encurralada. «Se ganhasse o Euromilhões ia amanhã para Portugal. Mas diga-me: com 55 anos, o que vou eu fazer lá, no ramo das confeções?

Encontramos Rosa Correia deitada na cama, a receber soro. Tem uma gastroenterite que trata em casa, porque «se for para uma clínica, vai-se o ordenado de um mês». Paga pouco pelo pré-fabricado onde vive há mais de 20 anos, uma casa humilde, com dois quartos, à qual foi acrescentando divisões.

Ao lado, um pré-fabricado com quatro quartos está alugado por 8 mil dólares. «Isto não é o El Dorado. Saio todos os dias de casa às 6 e 15 e regresso às 20 e 30, sem parar para almoçar. Estou a ganhar bem, mas tenho 25 anos de Angola. Quem vem para aqui ganhar 5 mil dólares achando que é dinheiro engana-se», avisa.

Rosa chegou a Luanda em 1985, oriunda da Póvoa de Varzim, «solteira e boa rapariga», cheia de sonhos revolucionários. «Era do PCP e pensava que vinha ajudar a construir uma sociedade nova.» Em menos de um ano, deixou de acreditar no comunismo. «O marxismo-leninismo é como a Bíblia: lida é muito bonita, mas na prática nada se aplica. Foi o que aprendi aqui», conta. Em África, conheceu o seu marido, Vítor, 60 anos, também expatriado, e teve uma filha, atualmente a licenciar-se em Portugal.

Trabalhavam ambos na mesma empresa de confeções. Agora, Vítor tem o seu próprio negócio, de transporte de inertes, e Rosa retira um belo ordenado da gestão de três supermercados e um armazém. Quem olhar para a sua moradia de Vila do Conde vai achar que é rica: quatro suites, três salas, um salão com 200 metros quadrados, piscina, um grande jardim... Para gozar quando chegar a idade da reforma.

Entretanto, suspira. Se não sair de casa às 6 da manhã, demora três horas para percorrer quatro quilómetros; já foi assaltada três vezes com uma arma apontada à cabeça; tem de pactuar com a corrupção «institucionalizada», pois sem a «gasosa», seja em dinheiro ou em géneros, «não se faz nada»; e nunca, nunca se habitou à miséria, às crianças de rua, aos mutilados, a uma certa cultura que permanece, de assegurar a sobrevivência para hoje que amanhã logo se vê.

A paixão, no entanto, não ficou presa no passado. O casal tem um grupo de amigos - chamam-se os Empoeirados - e, nos fins de semana prolongados, agarram nos jipes para mergulhar na paisagem, como campistas. As praias de Benguela, as dunas do deserto do Namibe até à foz do Cunene... «Continuo a adorar África», resume Rosa, no país das contradições.

ADEUS AO ROQUE SANTEIRO

A hora de ponta, que dura todo o dia, com poucos e breves alívios, fez florescer um negócio: o dos vendedores da estrada. Entre o amontoado caótico de carros, sem delimitação de faixas de rodagem, naquele para arranca que é mais para que arranca, pode abastecer-se toda a despensa, encher o guarda-roupa e ainda decorar a casa.

Cada vendedor desfila exibindo o seu produto: comida, bebidas, uma cadeira, umas calças brancas, um chapéu de equitação, pasta de dentes, corta unhas, brinquedos, panelas, CDs com os discursos de Savimbi e tapetes, muitos tapetes farfalhudos. Uma autêntica loja chinesa ambulante.

As relações com a China inundaram também o histórico mercado Roque Santeiro com todo o tipo de artigos. O Roque, assim batizado devido ao sucesso da telenovela da viúva Porcina, deu este verão os últimos suspiros. Era um mercado imenso, ao ar livre, com tapa sóis de zinco por cima de cada banca, criando um labirinto onde estavam expostos milhares de telemóveis, baterias e carregadores made in China e longas filas de extensões de cabelos lisos made in Índia. Tudo com vista para o porto de Luanda, um espaço de apetite para os investidores imobiliários.

Para os terrenos do mercado - arredado para Panguila, a cerca de 18 quilómetros da cidade, mas com condições higiénicas que irão afastar, finalmente, as moscas da carne - estão prometidas infraestruturas para requalificar o bairro pobre da Sambizanga, onde José Eduardo dos Santos e Pedro Mantorras se fizeram homens.

Apesar disso, o fim do Roque gerou polémica. Tal como a destruição de alguns musseques, porque enquanto os novos prédios de realojamento não estão prontos (longe do centro, nos arredores da cidade), as pessoas são metidas em tendas de campanha, onde podem ficar um ano.

Os subúrbios são o paraíso da construção civil, quilómetros e quilómetros de tapumes com carateres chineses. Entre o povo começam a aparecer anedotas sobre os produtos de «fantasia» dos chineses e não há quem se esqueça do novo Hospital Geral de Luanda, que foi evacuado em julho, quatro anos depois de ter sido inaugurado, porque ameaçava ruir. Uma obra da China Overseas Engineering Group Company, que custou 8 milhões de dólares, ao abrigo de uma linha de crédito chinesa, em troca de petróleo angolano.

O negócio da construção chega, no entanto, para todos. Zonas nobres como a marginal, em frente da baía, ou o passeio à beira-mar da ilha de Luanda (na verdade uma península onde se encontram os clubes de praia da moda) estão a ser recuperadas pelas portuguesas Mota Engil e Soares da Costa (a marginal) e pela brasileira Odebrecht (a ilha).

ABISMOS SALARIAIS

A nova via rápida que vai para Luanda Sul é bem um retrato dos contrastes da cidade. De um lado, os musseques, os seus montes de lixo e as poças de lama; do outro os condomínios junto da praia, com arame farpado e guardas à porta.

Quem tem dinheiro não vai aos mercados de má fama. Mete-se na via rápida e estaciona no shopping de Belas, o primeiro centro comercial da cidade. Ali podem comprar-se óculos de sol Dior e poios da Gant, pelo triplo do preço que custam em Portugal. Perto, fica Talatona, zona que já foi campo e mato, de grandes embondeiros, onde os angolanos iam caçar coelhos e veados, e agora tem condomínios em largas avenidas de um só sentido, com faixas de rodagem assinaladas.

O empreendimento Dolce Vita ainda está em construção. Mas o andar modelo desvenda logo como será a «vida em grande estilo» que promete o cartaz publicitário. Ginásio, spa, restaurante, creche, piscina e SEGURANÇA 24 horas por dia, num total de 32 prédios, cada um com sete andares. Um T3 custa 920 mil dólares.

Sérgio Loureiro, 33 anos, natural de Penafiel, ajuda a erguê-los. É um dos 300 portugueses que a empresa Prebuild levou para uma obra que ocupa mais de mil trabalhadores. Formado em engenharia geotécnica, estava a trabalhar na Madeira, na fiscalização de obras, a recibos verdes e a ganhar 1300 euros por mês. Agora ganha 4 mil como técnico de SEGURANÇA e controlo de CUSTOS. Além da casa paga, do carro e das três viagens a Portugal por ano. «Vim há quatro meses com a ideia de ficar dois anos, mas posso ficar a vida toda. Aqui não me preocupo com o dinheiro», garante.

Sérgio mostra-nos a sua casa, no estaleiro central do grupo Prebuild. É um T1 préfabricado, com ar condicionado, alinhado com outras 80 casas, onde 16 mulheres fazem a limpeza. Carlos Romão, 46 anos, também tem lá o seu cantinho. Deixou a mulher, de quem nunca se tinha separado mais de dois dias, em Loures, e foi para Angola para escapar ao desemprego. «Era encarregado geral de uma empresa de construção civil, que deixou de me pagar e está à beira da falência», conta. Ganhava 1 500 euros líquidos. Agora vive com os 900 dólares que lhe dão de subsídio por estar deslocado. Pois não precisa de tocar no ordenado mensal de 4160 euros, que vai diretinho para uma conta em Portugal.

Estes salários não são para todos. Na mesma obra, os angolanos serventes levam para casa 450 dólares (ou 150 se ainda forem aprendizes). O abismo já não é ditado pela cor da pele, como no tempo da outra senhora; está na qualificação. As estatísticas, em Angola, são praticamente inexistentes. Segundo a UNESCO, a taxa de literacia era de 70%, em 2008, e apenas 57% das mulheres sabiam ler e escrever.

A constatação, no entanto, é geral: o país tem grande carência de quadros, do licenciado ao mestre carpinteiro, por exemplo. Na fúria construtora de Angola, também se têm feito escolas e hospitais, é certo. Mas onde estão os professores e os médicos?

UMA ESCOLA PORTUGUESA

A professora Leonor Sousa, 48 anos, é diretora na Escola Portuguesa de Luanda, «onde a lista de espera quase duplica o número de alunos inscritos: cerca de 1400, do pré-escolar ao 12.º ano, no último ano letivo. A instituição é gerida pela Cooperativa Portuguesa de Ensino em Angola e o edifício pertence ao Ministério da Educação luso.

Os seus preços são acessíveis comparados com os praticados pelas escolas privadas - os alunos portugueses, a grande maioria, pagam cerca de mil euros por quadrimestre. Mas as condições podiam ser melhores. As salas de aula são iguais às das escolas portuguesas, mas sente-se a falta de instalações desportivas e de balneários.

Mesmo assim, a instituição é a predileta dos portugueses. Não se compara com as escolas públicas de Luanda, algumas ainda em fase de «apetrechamento», ou seja, de aquisição de carteiras e material escolar; outras com condições higiénicas deficientes. No entanto, o crescimento da oferta de ensino público tem levado ao encerramento de algumas escolas privadas.

Há 20 anos em Angola, Leonor, a diretora, natural de Chaves, confessa ter dificuldades em contratar professores portugueses, uma vez que o ordenado acaba por não ser atrativo, embora inclua também um subsídio, tendo em conta o custo de vida. «Há quem tenha dois empregos para ter dois salários», conta. Não é o caso de Filomena Oliveira, 49 anos, professora de Filosofia, porque, juntamente com o marido, António Moreira, 50 anos, contabilista na Soares da Costa, leva para casa cerca de 11 mil dólares por mês.

O casal, que chegou a Angola há 12 anos, vive no centro, num T2 de 1971, sem elevador, pelo qual paga 3 500 dólares por mês. Já se tinham cansado a galgar a um sétimo andar, agora desceram para um segundo. «É preciso um certo espírito de adaptação, mente aberta. África é para ser vivida dia a dia; o espírito de vir sacar o máximo dinheiro não funciona aqui, entra em choque com a cultura», explica António. A grande diferença, para Filomena, está na forma como vivem em família. «Estamos juntos ao pequeno-almoço, ao almoço e ao jantar, algo impensável em Portugal.»

Almoçar em casa ainda faz parte dos hábitos de muitos angolanos, apesar do trânsito. E essa é a razão pela qual a hora de ponta se estende ao meio-dia.

NOITES DE LUANDA

Quinta-feira à noite, há música ao vivo no Miami Beach, um clube de praia da moda, na ilha de Luanda, do qual Isabel dos Santos, a filha mais velha de José Eduardo dos Santos, é sócia. As classes altas divertem-se ali, à beira-mar, entre caipirinhas e palmeiras. As classes baixas não precisam de pagar entrada para terem farra: basta uma aparelhagem numa rua de um musseque, sardinhas e cerveja para que o fim de semana seja uma delícia.

Quinta-feira é também noite grande no Palos, discoteca famosa, noite latina de salsa, rumba, minissaias rodadas e decotes generosos. Mas a sexta-feira é no Chill Out. Neste espaço, de inspiração marroquina, um jantar sem abusos custa 75 dólares por pessoa. Mais tarde abre a pista de dança, com vista para o mar.

O clube de Luís Castilho, 28 anos, neto de portugueses, nascido na Namíbia, mas criado em Lisboa, é de topo. Nas suas festas, animadas por djs que leva da Europa, só entra quem deixar 100 dólares à porta. «Tenho o bar de referência em Luanda. Em Portugal não conquistava o que conquistei com esta idade», acredita.

A terra das oportunidades... uma faceta de Angola sempre presente nas conversas com os portugueses. E na vida de Vânia Vilela, 30 anos, apresentadora do magazine sociocultural Chocolate, na TV Zimbo, o primeiro canal privado do país. «Aqui há muitas oportunidades profissionais que se concretizam muito rapidamente», diz. Vânia é angolana, mas cresceu em Portugal.

Licenciou-se em Comunicação Social e nem sonhava em ir viver para Luanda. Até que conheceu Luís, numa noite de música africana, numa discoteca do Porto...

Licenciado em Gestão Hoteleira, Luís trabalhava a recibos verdes, organizando bares em festivais de verão ou coordenando ações de promoção quando o pai o chamou para abrir o Chill Out, em 2005. Há já alguns anos que o seu pai tinha regressado a Angola, depois de a família ter perdido os seus negócios, em 1975. De modo que o rapaz já tinha passado longos períodos de férias em Luanda, ainda antes do fim da guerra, onde, sem parabólica, sem espaços noturnos e sem centros comerciais, o tempo custava a matar.

Agora a sua grande ambição é internacionalizar o Chill Out, ficando o mundo a saber que a «casa-mãe» se situa na capital angolana. O empresário abdicou dos seus amigos, do seu estilo de vida em Lisboa, mas encontrou outras compensações.

Tem um bom rendimento, faz férias em Miami ou Nova Iorque, e assiste à construção de um país. O país de Vânia. Na confusão de Luanda, a apresentadora descobriu que, no Porto, vivera «como uma princesa». Mas aprendeu a desenrascar-se. «Aqui é preciso muito pouco para se ser feliz.

'UM ATO DE AMOR'

Helena Martins, 54 anos, é que diz já não ter idade para lhe bastar o «amor e uma cabana». Certo é que a sua vivenda em Alvalade está muito longe de se parecer com uma cubata. O que a decoradora quer dizer é que sente a falta dos eventos culturais e dos desafios profissionais. Na sua área, batalha-se muito pela conquista do mercado e, apesar da evolução do comércio em Luanda, Helena continua a abastecer o seu showroom nas feiras de design internacionais. Nascida no Uíge, foi para Lisboa em 1975, com 18 anos. «Sou angolana de coração e portuguesa por opção. Viver aqui é um ato de amor», diz.

Amor pelo país e amor pelo seu marido. Porque os olhos de António Martins brilham quando fala da cidade que o viu nascer, há 57 anos. «É a melhor terra do mundo. De modo algum troco viver aqui por uma vida em Portugal. Sinto-me em casa.»

Quando o pai perdeu o seu «pequeno império colonial» de produção e distribuição de bens alimentares, António tinha 22 anos. Em Portugal teve empresas de distribuição de congelados. Em 1991, voltou a Angola. «Estava igual, com exceção de que não tinha gente nem havia quase nada para comer. A partir daí, passei a vir todos os anos até me radicar, definitivamente, em 2002», descreve.

À frente da cadeia de supermercados Martal (juntamente com outros sócios), que inclui seis estabelecimentos, mais três com abertura prevista, um centro de distribuição e dois cash&carry, António fala das melhorias do seu país: «Todas as economias de guerra são caras, mas os preços estão agora a estabilizar. Há muito Estado, o que é próprio de uma sociedade nova - se não for o Estado a fazer as infraestruturas, quem as faz?»

Em casa dos Martins ainda vive o filho mais novo, João, de 17 anos, que nos desvenda os seus planos para o futuro: tirar o curso de Gestão em Portugal e regressar a Luanda. «Já é ponto assente que volto. Aqui há muito mais oportunidades, está tudo por construir.» A sua namorada, Margarida, 26 anos, concorda. Formada em engenharia civil, chegou este ano a Angola e está a fiscalizar a construção de uma das maiores torres de escritórios, na marginal. «Em Portugal nunca me dariam uma torre deste tamanho para fiscalizar, logo no início da carreira. Começaria provavelmente por arquivar papéis atrás de uma secretária», resume. Já para a maior parte dos angolanos de Luanda o grande desafio está ligado à arte do desenrasca.

A 'GASOSA' ENTRANHADA

Outra boa fonte de emprego é a SEGURANÇA, seja privada, à entrada dos condomínios, seja pública, militar ou policial. Mas muitos agentes também fazem pela vida, sempre à coca da gasosa (pagamentos por baixo da mesa). O estacionamento caótico é uma mina. Para quê pagar 800 dólares ao reboque para se recuperar o carro, quando 200, dados a uma autoridade, fazem o mesmo efeito?

Para a população, incluindo os portugueses, entrar ou não no esquema da gasosa não é uma opção - mais cedo do que tarde, vai ser impossível escapar-lhe. De acordo com a organização Transparency Internacional, Angola está entre os 20 países mais corruptos do mundo, ocupando o 162.0 lugar (em 180) no índice que mede a perceção da corrupção nos serviços públicos e na sociedade em geral.

«O próprio regime habituou as pessoas a fingir que trabalham e o Governo a fingir que lhes paga. Então, passa-se mais tempo a criar esquemas de corrupção, em que os mais fortes sobrevivem e os mais fracos desaparecem. É uma espécie de darwinismo económico», descreve Rafael Marques, 39 anos, jornalista, que publica as suas investigações no site makaangola.com, uma dor de cabeça para Eduardo dos Santos.

«O Presidente tem uma situação dúbia: por um lado institucionalizou a corrupção; por outro, é refém dessa política. A base do seu poder já não é o poderio militar, mas a capacidade de corromper a sociedade. A questão dos vistos ou das dívidas às empresas mais não fazem do que tornar o investidor estrangeiro dependente da nomenclatura», denuncia.

Justino Pinto de Andrade, 62 anos, combatente histórico da luta pela independência, mandado para o Tarrafal por Salazar, ri-se quando fala da nova Lei da Probidade, principal instrumento do combate à corrupção, que Eduardo dos Santos tem assumido nos seus recentes discursos. «Não acredito que o Al Capone dê um bom juiz. Nenhum deles tem moral para julgar os outros. Sob a alçada da lei só caiu peixe miúdo. Veja-se o caso do Banco Nacional de Angola (de onde foram desviados 137 milhões de dólares): apanharam o porteiro e o estafeta, mas não vai cair seguramente um ministro», ironiza o diretor da Faculdade de Economia da Universidade Católica de Luanda e líder do recém-criado partido Bloco Democrático.

'BUÉ DE CARAS'

Alberto Arsénio Sabino, 50 anos, mais conhecido por Sr. Carlitos, não ia gostar nada desta conversa se a ouvisse. Homem do MPLA, ex-combatente, está convicto do esforço no combate à corrupção: «O cerco está montado. O Presidente tomou conta de tudo e agora é muito difícil ser corrupto. Já brincaram de mais. Quem aproveitou já não aproveita mais. Agora é preciso justificar os sinais exteriores de riqueza», garante.

Em 1990, o Sr. Carlitos foi um dos fundadores do Movimento Nacional Espontâneo, de apoio à candidatura de José Eduardo dos Santos à Presidência da República. Não é um movimento meramente político; é sobretudo desportivo, pois segue a seleção de FUTEBOL para todo o lado. Com ele vamos à ilha do Mussulo, a dez minutos de barco, vazia na época do cacimbo, quando os resorts aproveitam para fazer pequenas obras. As classes mais baixas também chegam lá, mas essas montam tendas na zona mais despovoada da ilha.

As elites passam férias na Europa, no Brasil ou nos Estados Unidos, mas também têm casas no Mussulo, onde Eduardo dos Santos está atualmente a construir a sua (as mais baratas custam meio milhão de dólares). Na paisagem de palmeiras e coqueiros, destaca-se uma casa colorida, que foi de Agostinho Neto, o tal Presidente que dizia, referindo-se à fome: «Saco vazio não fica em pé.

Boa Angola também para alguns angolanos... Deixamos a Luanda dos extremos ainda com o «kuduro de intervenção», de Dog Murras, na cabeça. O tema deu que falar e chama-se Angola, Bué de Caras (quem sabe se ironizando com a revista Caras Angola, de Tchizé dos Santos, outra filha do Presidente, onde semanalmente desfilam as elites): «Angola do petróleo, do diamante e muita madeira/Angola do paludismo, febre tifóide e muita diarreia... Angola dos herdeiros que não fazem nada e têm bué de massa/Angola do kota honesto, que bumba bué e não vê nada.»

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